domingo, 5 de dezembro de 2010

" Se você disser que eu desafino amor..."

Seu sapato era de tirinhas coloridas e seu sorriso era Bossa Nova, usava saia e um cabelo enroladinho, grande, pés brancos e um cordão estranho.

No meio de um salão com luzes amarelas dançava como se quisesse embarcar o mundo, sorria e dizia besteiras, tudo era maravilhoso com a mesma intensidade que era horroroso... Perdia-se em sonhos jovens e às vezes se debatia em sustos infantis consigo mesma, se reprimia, talvez naquele momento precisa-se de um gim com soda e um “aquietaleão”. Observa-se tudo isso apenas com um dança, naquele salão com piso lustrado e uma dose de cachaça na mão esquerda, balançava-se no mesmo ritmo que o cabelo que se despenteava toda hora.

Saiu andando, em um plano seqüência magistral, no salão, até o bar, com pezinhos saltitantes e uma musica latina, chegava, acendia o ultimo cigarro e pedia outra caipira sem açúcar. Queria sentir tudo, até a dor no joelho que não parava de incomodá-la, tudo era feito de prazer, um prazer louco de liberdade e medo. Chorava escondida dentro da metade do coração, se magoava e sentia dor e talvez saudades... Mas, seus olhos gritavam por aquele calor do Rio, em abril, 1970, queria ver a trama e aproveitá-la incansavelmente.

Pegou um taxi na av. Brasil e pediu para chegar ao Catete, queria outra dose antes de chegar em casa. Foi dançar agora, em uma fotografia avermelhada, da casa de um grande amiga que bebia whisky com seu esposo boa praça e um amigo daquele grupo da juventude alucinada e saudavelmente feliz.

Conversaram sobre o tudo de ruim e se sentiam melhores de suas próprias ruindades, protegendo-as em suas mentes. Divertiam-se e cantavam a Nina da melhor maneira embreagada que ela deveria ser cantada. Sentiam calor e queriam mais e mais, era essencial naquele momento viver sempre o mais, o tudo, ou não... No final acabavam dançando e rindo, rindo dos seus dramas pseudoburgueses e normais, sem sentir culpa por tudo aquilo, tranqüilos... Naquele apartamento branco com livros e cigarros, pedaços de tomate na cozinha, um Stain Getz saindo de duas caixas de som e uns vinis, o blasé rockn’roll com anarquismos lingüísticos e uma necessidade de profundidade, levavam-se juntos para o fundo e conseguiam sair daquela superficialidade que um deles alertava e gritava e todos os outros ouviam principalmente ela.

Aquela noite estava sendo um solo de guitarra com ar setentista... Foram para praia, sentiram areia e se importavam naquele momento apenas com aquelas informações sensoriais... Fechava os olhos e como os gatos conseguia sentir o gosto de todo aquele lugar apenas com o cheiro...Desbundavam-se em planos mirabolantes para dominar o mundo e que com certeza iriam ser feitos, um dia... Era tão bom entender quase tudo, daquele momento e terminar tudo com pés sujos e dores de cabeça....

No final, aquele quarto escuro, seu apartamento antes alaranjado, cantarolava cambaleante aquele samba antigo de Cartola : “... Fim dessa saudade deve ter outro alguém pra amar...” , na sacada, uma madrugada de uma sexta-feira qualquer do mês de Maio na cidade do Rio de Janeiro.

Um comentário:

  1. "Isso de mim que anseia despedida
    (Para perpetuar o que está sendo)
    Não tem nome de amor. Nem é celeste
    Ou terreno. Isso de mim é marulhoso
    E tenro. Dançarino também. Isso de mim
    É novo: Como que come o que nada contém.
    A impossível oquidão de um ovo.
    Como se um tigre
    Reversivo,
    Veemente de seu avesso
    Cantasse mansamente.

    Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
    Como pode ser isso? Ser tenro, marulhoso
    Dançarino e novo, ter nome de ninguém
    E preferir ausência e desconforto
    Para guardar no eterno o coração do outro."

    Cantares de sem nome e de partida.
    Hilda Hilst

    ResponderExcluir